DE ONDE VÊM AS HISTÓRIAS?
“They say that travel broadens the mind 'til you can't get your head out of doors.”
- Elvis Costello, “God’s Comic”
Os relatos sobre aquilo que aconteceu, sobre o que foi visto ou vivido, acompanham nossa evolução de espécie pensante há um tempão, pelo menos a partir da tal revolução cognitiva, evento que Yuval Harari dissecou e nos devolveu mastigado para que pudesse se transformar em conversa de botequim. Eles são a chance de eternização destes fatos – seja através de pinturas rupestres e hieróglifos (como os antigos); seja através da transmissão boca-a-boca (como os fofoqueiros, talvez ainda mais antigos); da gravação de áudio ou audiovisual (como nos depoimentos à posteridade promovidos pelo Museu da Imagem e do Som, relatos filmados em documentários ou, mais recentemente, em stories, reels e afins); ou em registros escritos como este aqui. Este último recurso talvez seja o mais disseminado por biógrafos e jornalistas. Ou escrivãos, raça hoje rara, como Pero Vaz de Caminha que cravou na nossa certidão de nascimento: “Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.” Eternizou um momento a partir do seu ponto de vista, bem possivelmente o ponto de vista de alguém que gostava muito de vinho.
Existe um espaço sem nome, massa ou cheiro entre o fato e o relato, um vão fértil que é uma beleza para a gênese de uma boa história. Este tecido-supernova é construído e sustentado ao custo do trabalho de uma engenhosa e misteriosa força chamada memória. Não a memória flash dos nossos devices, mas a memória-calabouço. Ora escuro, ora iluminado este tecido, mas, de qualquer modo, toujours um universo descaralhante de possibilidades.
Trazer matéria da memória para a folha em branco é uma negociação que se dá em um oceano profundo, numa espécie de pescaria – há de tudo pairando pelo tecido, tem vezes que içamos um pneu ou um baiacu. Mas tem vezes que vem um marlim que te rompe a linha. Melhor ainda se ele te arranca a bunda da cadeira e te traz para um banho na água que é sua – em alta velocidade. Um fato nota seis pode gerar um relato nota nove, por exemplo. Não vou abrir nesta elucubração espaço para as obras da criação – a ficção – que é pescaria de outra natureza, embora haja interseções a cada esquina: Christopher Vogler também propõe a reflexão “de onde vêm as histórias?” logo no prólogo do seu A Jornada do Escritor. E vai acabar abraçado com mitos ancestrais em um livro obrigatório para storytellers e para story consumers.
Como documentarista o meu interesse está essencialmente, mas não exclusivamente, nas histórias reais. Mas mesmo as melhores histórias reais invariavelmente negociam com os limites do real. Como nos melhores documentários – e nos ruins também – elas testam a tenacidade da memória falível, e flertam com a ficção antes de tornarem-se definitivas. Jorge Bodanzky foi pioneiro por aqui quando brincou nesta gangorra ficção/não-ficção de forma primorosa no seu Iracema – Uma Transa Amazônica quando eu e a rodovia Transamazônica tínhamos um aninho de idade.

Cada vez mais só conto minhas histórias on demand. Nunca fui um cara que sai contando suas próprias histórias por aí, independente da existência ou do interesse de um interlocutor. Em uma autoanálise rasa diria que sou um low-key num mundo de show-offs. Problema meu, devo deixar de pegar trabalho por isso mas topo a equação. Hoje em dia tenho contado menos histórias ainda, e não é por falta de histórias. Pelo contrário: habemus fabulae. E me dou conta de que acumulei uma quantidade considerável de episódios pitorescos – alguns hilários, outros trágicos ou quase inacreditáveis até para mim mesmo – em mais de um quarto de século viajando por quase oitenta países trabalhando como uma espécie de faz-tudo deluxe a serviço do conteúdo audiovisual de não-ficção. Fora os episódios que me foram tomados pelo esquecimento e para os quais já dispensei desapego definitivo. De olhos fechados, seja meditando por 23 minutos nas primeiras horas da manhã ou no duro trabalho de me manter em modo REM in the still of the night, estas pepitas perdidas às vezes me cruzam a escuridão como um meteoro, me rasgam a (sub) consciência e, escorregadias, são engolidas novamente pelo mantra ou por um sonho. E voltam para o conforto quentinho do esquecimento.
Foram muitas as pessoas que me estimularam a escrever um livro. Algumas o fizeram depois de ouvir uma destas histórias que prevaleceram; outros depois de ver fotografias em folhas de contato P&B do século passado ou em ambiente digital – do Fotolog ao Facebook à efemeridade dos stories. Até que enfim topei organizar os Moleskines e os arquivos Word que venho saving as... desde que este era um mundo pós-Windows-pré-Internet. E resolvi abrir um novo arquivo Word, este aqui (provisoriamente intitulado On The Road), para surfar o tal tecido-supernova atrás das melhores versões das melhores histórias. E também emergindo de vivências que antecedem em muito a fase da vida quando a profissão me escolheu – ali pelos mid nineties – a memória aponta na direção destas histórias aqui reunidas. Pessoais, universais, banais, sensacionais, etc e tais.
Talvez pensando nos meninos aqui em casa ou nos aspirantes a contadores de histórias – no campo do audiovisual ou no universo literário, onde me aventuro aqui pela primeira vez de modo mais aprofundado e organizado – resolvi apontar minha antena na direção dos misteriosos rincões da memória para capturar do meio da radiação cósmica de fundo tatuada no meu peito grisalho algumas das experiências que fizeram eu ser quem eu sou. São passagens que me fazem rir sozinho ou trincar os dentes na comoção do alívio, e que vou disparando aqui do jeito que eu me lembro – à la Buñuel em seu Último Suspiro. Desfrutando despreocupadamente das imperfeições, dos movimentos pelo tal vão entre os fatos e a sua lembrança, desapegado da obrigatoriedade utópica de emergir indefectível. Entrei na pilha de perpetuar os causos antes que eu os esqueça todos ou comece a inventar demais. De qualquer forma, eu nem saberia apontar hoje onde estão quaisquer imprecisões. Há testemunhas oculares e cúmplices (entre protagonistas e coadjuvantes) ainda vivos que poderão mandar cartas à redação contestando qualquer vacilo – que a gerência promete rever antes da segunda edição. E me conformo com o fato de que um tantão de fatos não vingou na memória mesmo eles tendo sido merecedores de um bom relato.
Só pode ser bênção para uma alma como a que sustenta a minha ossada: o fato dela ser regida pela curiosidade e de ter o privilégio de poder saciar boa parte desta sede no escritório. O escritório Terra. Eu apenas desconfiava de que, ao tomar a estrada do jornalismo e do documentário, estaria me disponibilizando de maneira irreversível a experiências transformadoras. Há quem me chame de sobrevivente. Eu acho exagero, mas também não posso afirmar que não sou. Batman Zavareze afirma toda vez que me vê. E eu, vivíssimo como um legítimo sobrevivente, dou risada e digo “até parece”. Mas o que importa mesmo é que ainda estou aqui para contar o que me recordo e que você está disposto a encarar o tomo. Tomara que persevere e siga adiante comigo por mais e mais páginas com real interesse. Que dê risada. Que trinque os dentes.
Depois de tanto tempo de andança, seja trabalhando para os outros em missões não ou sub-remuneradas; ou empreendendo minhas próprias jornadas com alguma coisa entre insistência e persistência, sinto um prazer enorme quando revisito determinado episódio. Me volta a mesma intensidade com que eu secretamente gozo dos desconfortos de cada momento de agonia. Não precisa reler, explico melhor. Já aprendi que mesmo na pior das situações, quando espremido no canto do ringue com olho roxo e nariz sangrando, incapaz de entender o que sopra o treinador ao meu ouvido, numa esquina mais à frente do tecido tempo-espaço, tudo aquilo será simplesmente memória, como de fato hoje é. Tudo terá já passado por uma temporada de alívio crescente e enfim poderá tornar-se uma lembrança e um aprendizado. Com o passar do tempo, o veneno vai virando caramelo, desde que você sobreviva, naturalmente. Portanto um brinde à memória, enquanto há. Enquanto é.

