AH! DONA ARANHA
São Miguel dos Milagres, AL - novembro de 2019
O corretor automático vai ter que me ajudar agora, mais do que nunca. Estou com meu dedo mindinho da mão direita em péssimo estado, mas ele já esteve bem pior. Escrevo de um quarto de hotel bem refrigerado num raro momento de descanso enquanto o sol frita ali fora. Estou começando o terceiro dia de um novo antibiótico, depois de ter passado pelas mãos de um cirurgião em Maceió. Meu dedo, com uma inflamação em veloz processo de evolução, precisou virar prioridade sobre o trabalho em andamento aqui pelo Nordeste e parei por dois dias para finalmente buscar auxílio médico adequado. A parada começou numa singela manhã em Algodões, na Península de Maraú: acordei com duas bolotinhas vermelhas na parte de cima da dobra do supracitado e sobrevivente (até aqui, pelo menos) dedo. Havia uma pequena bolha de água que não me preocupou muito na hora – podia ser um pelo encravado, podia ser a picada de um inseto local. Acontece que eu estou dirigindo e produzindo uma serie documental que exige uma dose considerável de dedicação física e mental da minha parte e, como de costume, sem perceber onde e quando, acabei machucando o machucado e a bolha d’água estourou ao longo da diária no set cheio de lama e maresia. Fora o que os olhos não veem.
Acho que foi somente no dia seguinte que eu percebi que as bolotinhas estavam aumentando de tamanho e me causando incômodo, se transformaram em uma única bolota. Em uma das regiões mais remotas da Bahia não me restava muitas opções senão me automedicar, pautado pelos palpites de terceiros, mais notadamente de um dos produtores que, hipocondríaco assumido, tinha pomadas para assadura, picada de insetos, anti-inflamatórios e afins. Passei um pouco de cada e ainda adicionei gotas do all-purpose, miraculous própolis verde, gentilmente cedido por um membro do elenco. Por conta da natureza remota das locações desse trabalho, não foram muitos os palpiteiros que cruzaram meu caminho nesta fase do périplo. Lá pelo quarto dia, viajamos de barco para Barra Grande e o dedo magoou de vez, muito sol na lata, era difícil me esquivar. Parti pro gelo e o machucado – inchado e fechado – começou a sorar. Doía cada vez mais, aquela dor latejante que acompanha o batimento do coração. O dia seguinte era um domingo e o posto de saúde local estava fechado. Trabalhei normalmente e fui observando a piora progressiva da ferida, que àquela altura apresentava um olho escuro central bem feioso. Na segunda feira foi Dia do Servidor Público e a UPA também não funcionou. Parti pra única farmácia da cidade, que ainda estava aberta, e fui atendido pela farmacêutica que falou “keep calm e passe Cataflam pomada e tome este anti-inflamatório de 8 em 8 horas”. No dia seguinte o dedo me parecia pior e consegui instaurar uma pausa nas filmagens para visitar o posto de saúde de Barra Grande. “Keep calm e tome este antibiótico aqui de 6 em 6 horas”, disse o doutor, o maior boa-praça.
O dia seguinte foi uma epopeia, onde ainda terminamos de filmar um dos episódios desta serie: deixamos Barra Grande de carro às 5 da manhã rumo a Ilhéus. De Ilhéus voamos um itinerário curioso, cortesia do produtor de logística que priorizou o budget e nos impôs um Ilhéus-Salvador (no Aeroporto Luis Magalhães Filho eu ainda fiz a proeza de correr para o desembarque para entregar um HD externo com material filmado que deveria voar para o Rio via SEDEX ainda naquela tarde. Corri e reembarquei em tempo de pegar a conexão em menos de 30 minutos), depois um Salvador-Recife para depois voltarmos atrás num Recife-Maceió. Em Recife, comi bolo de rolo.
Em Maceió bateu uma febre, meu corpo meio 6 volts e, assim que pousamos me separei do restante da equipe e fui para o Hospital Arthur Ramos, que me fora indicado pela produção local. O motorista do meu Uber chamava-se Rubion e não pude deixar de fazer uma associação com Barrichello; ele disse que rola essa piadinha praticamente to-dos-os-di-as. No hospital me encontrei com uma atenciosa produtora local que já me aguardava com a senha de atendimento na mão. Conversamos um pouco sobre política, assistimos um pouco de Jornal Nacional com as atualizações sobre o vazamento de óleo que vem assolando este belo litoral aqui e logo fui chamado para ver o doutor. Quando tirei o curativo que perseverava por um dia tão longo com tantas escalas, eu mesmo fiz uma careta. Havia uma ferida aberta, o dedo estava bastante inchado, irreconhecível como um singelo mindinho que um dia já foi. “Keep calm e a dose de anti-inflamatório que a farmacêutica te receitou em Barra Grande foi três vezes superior à indicada. Este remédio é um por dia e olhe lá. Vamos corrigir isso, mas quero que o cirurgião veja seu dedo para dizer se é possível fazer uma drenagem aí.” Entra em campo o cirurgião, demonstrando pouca sensibilidade perante um paciente tão sensível como eu, e deu um mata-leão no pobre mindinho deformado por todos os ângulos que pôde. E o bicho não drenou.



“Keep calm e vamos para o soro com Tramal para aliviar esta dor potencializada e ainda vou te aplicar um anti-inflamatório intravenal que vai ajudar a reverter esse jogo amargo.” Corta para um ambulatório cheio de pacientes – cada um com sua chaga – e, ao primeiro passo, não saberia dizer se o calafrio que me acometeu foi causado pela visão de tanta gente no seu sorinho ou pelo frio polar do asséptico salão. Tremi da cabeça aos pés e vice-versa. Fui bem amparado pelos vizinhos de assento, logo cruzei às pernas à la Mahatma Gandhi e me cobri com o lençol finíssimo azul-bebê. CSA 1 x 0 no Corinthians, um rapaz do outro lado do salão atualizou o enfermeiro de plantão. Já era pra lá de dez da noite e o tempo passou de maneira rara durante minha experiência ali, afinal o dia tinha começado mil quilômetros ao sul, mais de 20 horas antes. Cochilava e acordava no susto com cada novidade. Acordei no susto: “Keep calm e dá o bracinho aqui pro titio. Vou pingar bem pouquinho porque este medicamento pode causar náusea, ok?”. Soninho bom. Acordei no susto: CSA 2 x 0. Voltei pro soninho bom.
O que senti a seguir foi o mais próximo de um afogamento que eu já experimentei nesta vida, até mais do que o quase afogamento que já vivenciei tentando sair de baixo de um bote filmando um mal-sucedido rafting. Foi um afogamento de soro com Tramal na veia. Acordei náufrago, ninguém prestava atenção em mim enquanto acenava, suando frio, suando muito, sentindo a tal da náusea enquanto o Corinthians diminuiu o placar. O enfermeiro enfim se conectou comigo e veio na minha direção a 240 quadros por segundo. Neste meio tempo eu escaneei o chão ao meu redor atrás de um saco plástico, me agachei testando os limites do tubo que levava o soro com Tramal para a veia do meu braço esquerdo, peguei um trapo de plástico antigo e dei uma revigorante golfada sem sujar nada e ninguém. Não sei o que poderia estar saindo de mim, já que não tinha almoçado ou jantado até ali. Talvez uma castanhazinha de caju e, ah, é claro!, o bolo de rolo. Dei uma segunda golfada antes do enfermeiro fechar a torneira e me salvar de uma sensação bastante desagradável. Com o rosto e o corpo molhados de suor, sentia ainda mais frio, keeping it fucking calm. Como a noite é uma criança, muita coisa ainda aconteceu antes de chegar à minha caminha: minha acompanhante – a produtora Lailah – enfim apareceu na enfermaria preocupada com o horário de fechamento das farmácias locais, esperamos pela volta do doutor para me receitar os medicamentos corretos nas doses corretas, passamos numa farmácia para novas aquisições, incluindo um Toddyinho que foi imediatamente vomitado na calçada em frente. Partimos numa navegação solitária até o hotel, que ficava uns 10km fora de Maceió. A cidade inteira dormia. Lailah me deixou no hotel e agradeci imensamente pela companhia e pela paciência dispensada. No balcão do hotel, o recém-acordado recepcionista não encontrou meu nome na lista de hóspedes ou reservas. Liguei meu celular morto no power bank e confirmei que estava no hotel errado. Liguei para Lailah. Esperei pela volta de Lailah. Dirigimos até o hotel correto. Aguardamos o porteiro acordar para abrir a cancela. Entrei pelo hotel às escuras, mas com som ambiente ligado num samba-reggae, e procurei pelo recepcionista. Não encontrei. Voltei à guarita. O segurança passou um rádio. “Senhor Rodrigues, estávamos esperando mesmo pelo senhor.” Quarto 307, boa noite. O ar-condicionado não funcionou. Liguei para a recepção. O rapaz me trouxe um ventilador portátil e dormi por umas 9 horas seguidas.

Acordei, finalizei roteiros, tomei um baita café da manhã reconectado ao resto da equipe e logo caímos todos na estrada rumo a Milagres. Que viagem dos infernos. Vomitei todo o café da manhã em umas oito parcelas, entre canaviais e sombras de pés de jamelão lindamente floridos. Abrir a janela do carro para tomar um ventinho no rosto significava sentir o cheiro azedo-amargo do bagaço de cana de açúcar das refinarias da região, que aceleravam as náuseas entre curvas e quebra-molas. Ouvimos todo o “Delicate Sound Of Thunder” do Pink Floyd nesta jornada pelas profundezas do inferno, descobri que o diretor de fotografia gosta de fazer as curvas usando as tangentes, em alto giro de motor. Quando percebi que não havia mais nada a ser liberado por um organismo castigado, percebemos que estávamos no caminho errado, cerca de 20km fora da rota. Corrigimos a direção entre solos de Gilmour e logo estaríamos em Milagres com a bênção de Padre Cícero por quem, por casualidade, passamos batidos, à minha esquerda. Segui imediatamente para um quarto solitário e dormi por um par de horas definidoras, antes mesmo da hora do jantar. Talvez tenha sonhado, não me recordo ao certo. Mandei uma foto digna de Halloween (era dia 31 de outubro!) e um relato detalhado (como este aqui) para meu clínico geral no Rio de Janeiro, um rubro-negro prático e sensível ao ponto de saber que também eu sou um cara sensível. Michel respondeu pelo zap “keep calm e vamos buscar um cirurgião para fazer uma drenagem neste dedo. É difícil palpitar à distância, mas me parece uma inflamação contida onde o antibiótico não consegue chegar.” Em poucos minutos me chegou o contato de uma clínica particular em Maceió em frente à Santa Casa onde estariam à minha espera na manhã seguinte. A foto do meu dedinho-dedão havia viralizado nas redes médicas da capital. Convoquei uma reunião de briefing com toda a equipe, montamos um plano de ataque para que gerassem conteúdo na minha ausência, e fui dormir cedo atrás de um sonho bom.
Galo mal cantou e enquanto minha equipe partia para a gravação, eu voltava para Maceió dirigindo nosso Jeep alugado, escutando Beatles e Costello. Bati cabeça no perímetro urbano da cidade na busca de um estacionamento rotativo nas proximidades. Onde há uma Santa Casa sempre há muitas funerárias ao redor, lojas de flores etc – pensei na morte, não posso negar – e sempre há estacionamentos rotativos. A recepção da clínica do Dr. estava apinhada de gente. Peguei minha senha e encontrei um assento bem no meio de dois cabras debatendo a reforma da previdência. Não aguentei por muito tempo e logo vagou uma cadeira na pole position, bem em frente à TV em plena difusão do Globo Esporte pós rodada do Brasileirão. Filé. Fui chamado antes dos gols do Flamengo e logo encaminhado para a sala do Dr Paulo, o dono do estabelecimento, que me recebeu com um sorriso cordial e um olhar astuto, já procurando minha mão como uma criança na frente de um baleiro. Falei um pouco da minha vida e da vida recente do famoso dedo, trocamos figurinhas rasas sobre os atrativos do litoral de Alagoas e sobre a cerveja Corona – meu contratante naquele job – e ele logo me encaminhou para a sala anexa. Deitei-me e estendi meu braço em cega confiança por cima de uma bandeja metálica cheia de instrumentos prateados daqueles que costumam me trazer arrepios. “Olhe Gustavo, aqui vamos ter que debridar, não tem jeitchu não. Só vou te cobrar o material.” Eu entendi que ele iria depredar meu dedo e achei normal, dada a longa duração da saga até então e o estado do pobre mindinho. Não deu tempo de explicar a ele que não consigo permanecer neste tipo de ambiente sem anestesia geral, que costumo desmaiar por muito menos, não deu tempo para sequer pegar meu fone com noise-cancelling para recorrer à ajuda dos Deuses do Metal ou do Príncipe das Trevas, logo tomei uma serie de picadas de anestesia local. “Gustchavo, keep calm e dê a mãozinha à Neuza que isso aqui vai ser jogo rápido. Eu tô querendo te ajudar a resolver isso aqui.” E tome-lhe crec crec crec. “Tá feio demais isso aqui, rapaz.” Crec crec crec. E eu apertava forte a mão da enfermeira e buscava alento na repetição do seu nome, no diminutivo. “Neuzinha, não largue minha mão, Neuzinha!” – enquanto eu debridava a mão dela – e coisas do tipo pela uma ou meia hora que a tortura tenha durado. No idea quanto tempo levou aquela agonia. Só reestabeleci contato visual com Neuzinha e com o doutor depois de me levantar da cama com as têmporas suadas, meu dedo devidamente curativado, mantendo o raio de atenção bem distante da bandeja de metal e o que de carne podre poderia estar sobre ela naquele momento; e logo vi que um pouco dos fluidos remexidos no mindinho ainda estava ali, espalhado e coagulado em seu vizinho. Pedi por um quartinho para poder me reestabelecer antes de encarar o bafo do centro de Maceió. Neuzinha me trouxe água com açúcar cristal com gosto de pura cana e, estando na terra do açúcar, raspei do copo plástico cada grão que restou no fundo em busca de doçura e tranquilidade. Fiz check-out da clínica com um sigelo PIX, depois check-in em um hotel que me foi indicado por alguém ao longo do caminho. Fiz novas compras na farmácia do bairro da Jatiuca, comi um bife com batatas assistindo a um show de sertanejo-chic, dropei os novos antibióticos e anti-inflamatórios e logo me recolhi ao conforto três estrelas – hibernei, tirando curtas férias de mim mesmo, em uma noite de mais de 13 horas de sono.
Encarei a estrada de volta para Milagres em pleno sabadão de Finados (pensei na morte mais uma vez) para me juntar ao resto da equipe no arremate das gravações daquele dia, a tempo de um peixe assado por debaixo da areia numa praia ocupada que enquadrávamos como uma praia remota. Minha temporada de 72 horas de solidão completa estava prestes a terminar, com um curativo over-sized abraçando um dedo over-sized.
